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27 Junho 2010

É um caso único em Portugal – e seguramente raro no mundo. Uma freguesia açoriana com pouco mais de 1500 pessoas dispõe de 15 golfistas one-digit handicap, à razão de um por cada cem habitantes. Isto sem contar os que emigraram ou, tendo permanecido na ilha, jogam apenas uma vez ao ano, no torneio especial em honra de Nossa Senhora de Guadalupe. São quase todos antigos caddies – e vários deles acabam de conquistar para o Clube de Golfe da Ilha Terceira o título de campeão nacional Interclubes Mid-Amateur

 

José Carlos Azevedo é campeão nacional. Agnelo Ourique também. José Carlos Fagundes não é, mas foi vice-campeão em 2009. José Adriano Godinho idem. Já Jorge Soares é ambas as coisas: ganhou este ano e ficou em segundo em 2009. E Pedro Fagundes, não sendo uma coisa nem outra, foi suplente na equipa deste ano. São apenas alguns dos golfistas da Agualva, de resto a maior parte deles antigos caddies. Ao todo, e para uma população global de pouco mais de 1500 habitantes, a pequena freguesia da ilha Terceira dispõe de 15 jogadores one-digit handicap, o que dá um ratio de um golfista de excelência por cada cem habitantes. “E isto é sem falar nos que emigraram para a América e para o Canadá”, diz Agnelo Ourique, 51 anos, bombeiro, handicap 4,7 e um dos elementos da equipa que conseguiu para o CG da Ilha Terceira, no início deste mês, o título de Campeã Nacional Interclubes Mid-Amateur, disputado na própria ilha. “Se fôssemos contar com todos os que emigraram, provavelmente havia o dobro de one-digit. E, aliás, o dobro dos jogadores.”

Para já, e dos 171 golfistas oficiais da ilha Terceira, 42 são da Agualva, o que representa cerca de 25% do total dos handicaps geridos pelo clube (a população da freguesia não chega aos 3% do total da ilha). E a explicação, em primeiro lugar, é a mais simples: a proximidade geográfica. “O campo não é propriamente ao pé do centro da freguesia, mas parte dele está em terrenos da Agualva. E isso tem influência”, diz Délio Soares, 34 anos, encarregado de construção civil e handicap 5,1. Mas o facto é que, se a geografia explica o facto de muitos deles se terem tornado caddies, a forma como a maior parte se tornou golfista – e depois golfista de qualidade – passa por uma série de factores, incluindo gestos de especial generosidade da parte de civis e um importante envolvimento de uma série de militares (muitos dos quais de nacionalidade norte-americana) em serviço na Base Aérea das Lajes, a qual, de resto não só esteve por detrás da criação do campo como é, ainda hoje, co-proprietária do mesmo.

“Havia lá um alto funcionário, mr. Humpfrey (e que, se bem me lembro, até era civil), que tinha especial predilecção por nós, os caddies. E, então, ao pé da casa dos caddies, criou uma escola bilingue. Os que não sabiam falar inglês, aprenderam a fazê-lo; os que não se expressavam bem nem em português, nem em inglês, aprenderam as duas línguas”, conta José Carlos Azevedo, 55 anos, operador de rampa ao serviço da Sata e handicap 5,5. “Naquele tempo, parávamos todos de estudar logo a seguir à quarta classe, para ir trabalhar. E aquela escola foi muito importante para muitos de nós”, explica Pedro Fagundes, 59 anos, bombeiro e handicap 5,9. “Aliás, foi por causa dessa escola que, em muitos casos, fomos parar à Base. Falar inglês tinha muita importância na altura”, acrescenta José Adriano Godinho, 51 anos, antigo chefe de bar na Base e handicap 6,3. Dos 42 golfistas da Agualva (e especialmente dos 15 one-digit handicap), uma boa parte trabalha ou trabalhou para o contingente americano estacionado nos Açores. Entre os mais velhos, são quase todos.

O emprego na Base Aérea deu-lhes ao mesmo tempo dinheiro, estatuto e tempo livre. Anda hoje, por exemplo, um bombeiro da zona aérea trabalha 24 horas e descansa 48 – e as aposentações, em alguns casos, ocorrem logo na casa dos 40 anos. “Mas não é só isso. Nascemos quase todos em famílias modestas e, apesar de nunca ninguém ter ganho balúrdios, quem trabalhava na Base sempre se destacou um bocadinho entre a restante população das freguesias mais rurais, nomeadamente as do concelho da Praia da Vitória”, diz José Carlos Fagundes, 54 anos, igualmente antigo empregado de bar da Base e handicap 4,9. “Mesmo sendo o greenfee mensal deste clube relativamente baixo [€ 40 em 2010], devemos em parte à sorte ter podido começar a jogar golfe quando esta ainda era uma terra bastante pobre. Mas também é preciso dizer que não foram só facilidades. O facto é que demorámos ainda algum tempo a conquistar aqui o nosso espaço”, acrescenta.

Na verdade, a prática do golfe na Terceira nunca foi vedada a ninguém. Mas os preços eram altos, para muitos proibitivos – e, durante muitos anos, a maior parte dos caddies limitou-se a jogar uma vez por semana, no dia em que o clube lhes permitia praticar: primeiro à sexta-feira e depois à segunda. “Nos tempos em que era à sexta-feira, só podíamos jogar de manhã. Mas aproveitávamos tão bem o tempo que chegávamos a jogar 27 buracos até ao meio-dia. Era tudo completamente a correr, mas adorávamos”, recorda Agnelo Ourique. Depois veio o 25 de Abril – e o clube reagiu de imediato, abrindo-se à população em geral muito antes da maior parte dos seus congéneres nacionais. E, finalmente, veio o próprio amadurecimento dos caddies. “Eu, por exemplo, só comecei a jogar com regularidade em 1989. Podia tê-lo feito antes, mas então tinha outras prioridades. Casar, ter filhos, montar uma vida – isso também era importante. A vida não é só golfe”, acrescenta Ourique.

Alguns receberam os primeiros tacos da parte de militares americanos, a título de oferta. Outros compraram o seu primeiro set numa loja de artigos em segunda mão existente dentro do próprio perímetro da Base. Mais tarde, o principal fornecedor foi o célebre BX, supermercado onde, ao longo das décadas, tantos açorianos (e tantos continentais de visita à Terceira) compraram calças Levi’s e sapatilhas Nike a preços vantajosos. Já hoje, quem quer trocar de material fá-lo com recurso a familiares e amigos emigrados na América do Norte, via Internet ou mesmo na pro-shop do próprio clube, agora com gestão totalmente portuguesa,. “Já não há grandes vantagens em comprar as coisas na Base. Às vezes, aliás, nem sequer há vantagens nenhumas”, diz Délio Soares, que, na companhia do irmão, Jorge Soares (34 anos, condutor-manobrador da construção civil e handicap 4,8), integra a última geração de caddies da Terceira. “Mas também é preciso ver que nem todos andamos sempre a trocar de material. Em muitos casos, mantemo-nos fiéis aos nossos tacos antigos.”

É um dos aspectos pitorescos da história – e é um das principais atracções para tantos e tantos jogadores do continente que se vão cruzando com os antigos caddies terceirenses nos mais variados campeonatos e torneios de âmbito nacional. Agnelo Ourique, por exemplo, tem sempre de explicar porque é que joga umas velhas madeiras Ping a partir do tee (embora ao fim de pouco tempo os seus colegas de formação venham a constatar que, em muitos casos, sai mais comprido com elas do que os restantes jogadores com os seus drivers de 460 cc). O seu grip, de resto, também está longe de ser convencional: apesar de usar a pega interlock, aloja o polegar esquerdo por baixo da vareta, não por cima dela. E mais drástica ainda é a solução usada por Jorge Soares e José Luís Garcia (este um pedreiro da construção civil, com 42 anos e handicap 4,7): é a mão esquerda que fica abaixo da direita, e não o contrário. Chamam-lhe caddie grip – e é exactamente disso que se trata. “Ninguém me ensinou a jogar. Comecei a bater na bola como me dava mais jeito, e assim ficou. Se hoje fizer uma pega normal, bato nas oitenta e muitas, se calhar noventa pancadas. Com as mãos invertidas, raramente saio da casa das setenta”, conta Jorge. “E, então, toda a gente fica surpreendida. Há mesmo quem até quem dê um salto a desviar-se da parte de trás do tee, pensando que vou bater para trás.”

De todos, só José Carlos Fagundes ainda trabalha ocasionalmente como caddie – e apenas quando há jogadores do continente a visitar a Terceira, para torneios especiais. “Só nessa altura é que costuma haver pedidos. E eu vou. Dá-me jeito o dinheiro e, principalmente, gosto de fazê-lo. Os meus colegas têm vergonha, mas eu não”, explica. O trabalho vem quase sempre a revelar-se essencial: com roughs especialmente difíceis (sobretudo quando húmidos), greens bastante imprevisíveis e permanentes medições a fazer em resultado do vento ou da simples humidade, o campo de golfe da Ilha Terceira é quase sempre reconhecido como um “falso fácil” – e ainda recentemente a sua requalificação pelos técnicos da Federação Portuguesa de Golfe levou a um aumento tanto do course rate como do slope rate. “Acaba por sair toda a gente mais contente daqui quando usa um caddie. Sobretudo se for da Agualva”, brinca Fagundes.

Freguesia puramente rural, com uma economia historicamente à base da agricultura, da moagem e da madeira, a Agualva mantém-se, à semelhança da maior parte das povoações mais recônditas da ilha Terceira, fiel às suas tradições, continuando a brilhar nas folias carnavalescas e a engalanar-se para celebrar o Espírito Santo e a Nossa Senhora de Guadalupe (ou das Peras). Este ano, as celebrações dedicadas à padroeira, mais uma vez marcadas para meados de Agosto, serão especiais: em Dezembro passado, a freguesia foi assolada por um enorme temporal, incluindo uma enxurrada que provocou um morto e vários desalojados, como noticiou a televisão nacional ao longo de dias – e a população quer voltar a mostrar que não se deixa abater por catástrofes naturais. E será precisamente quando se celebrarem essas festas que, algures em meados de Agosto, o campo de golfe terceirense receberá mais um torneio especialmente dedicado aos golfistas da freguesia.

Participam todos, os que ainda jogam e os que já deixaram de jogar regularmente – e, vários são aqueles que, não jogando nenhuma outra vez ao longo do ano, partem para os fairways sem aquecimento nem nada e vêm a sair de lá com pouco mais de 80 pancadas. Entre eles estarão agora vários jovens, incluindo Paulo Nunes (14 anos, handicap 4,4) ou Evandro Pires (13 anos, handicap 12,0), filhos da freguesia que começam a aparecer com cada vez mais insistência nos campeonatos nacionais. “São excelentes jogadores de uma excelente freguesia”, diz, sorrindo, José Silva, 46 anos, pedreiro e handicap 8,8. Quem poderá desmenti-lo?

REPORTAGEM. J (O Jogo), 27 de Junho de 2010

publicado por JN às 23:56

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Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974. Publicou “O Terceiro Servo” (romance, 2000), "O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002), “Al-Jazeera, Meu Amor” (crónicas, 2003) e “José Mourinho, O Vencedor” (biografia, 2004). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista, tem trabalhado... (saber mais)
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