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16 Outubro 2010

Há uma velha máxima que resume como nenhuma outra a evolução de um golfista. (Espero não tê-la citado já aqui.) Um mau jogador é ao mesmo tempo inconsciente e incompetente: não sabe como se faz nem consegue fazê-lo. Um jogador mediano é consciente, mas incompetente: sabe como se faz, mas não consegue fazê-lo. Já um bom jogador é, paradoxalmente, competente e inconsciente: fá-lo bem mas, no momento em que o faz, a última coisa em que pensa é em como está a fazê-lo.

Basicamente, a consciência e a competência nunca se cruzam. Em não havendo consciência, nenhum homem alguma vez aprenderá a jogar golfe. Mas, em não sendo capaz de libertar-se dessa consciência no momento certo, ninguém alguma vez conseguirá efectivamente jogá-lo. E um dos maiores desafios que se colocam a um jogador profissional é precisamente o de voltar a pôr-se a salvo da dita consciência depois de ela ter tornado a possuí-lo (não, o verbo não é inocente).

Foi isso, até certo ponto, que Filipe Lima explicou na conferência de imprensa de ontem. Depois de vários meses preocupado com o swing perfeito, o jogador português passou outros tantos a tentar deixar de pensar nele. O resultado é o que aí está: -10 ao fim de 36 buracos, terceira posição ex-aequo à partida para as duas rondas do fim-de-semana – e, no horizonte (é mais do que legítimo sonhá-lo), a maior vitória de toda a sua carreira.

Dizia Dave Hill, guitarrista dos Slade e ávido golfista amador: “O swing de golfe é como o sexo. Não podes estar a pensar na mecânica da coisa enquanto a praticas.” Foi isso que Filipe Lima reencontrou: o prazer quase erótico (quase, não: o prazer erótico) do swing. O problema é que, no golfe, até isso é uma aprendizagem. Haverá alguma coisa mais contra-natura do que este jogo?

CRÓNICA (Especial Portugal Masters)

O Jogo, 14 de Outubro de 2010

(imagem: © www.desporto.publico.pt)

publicado por JN às 21:34

14 Outubro 2010

No futuro, talvez se torne regra dizer aquilo que ontem pensei, ao jogar ao lado de Matteo Manassero: “Este miúdo é um ball striker incrível, mas tem um jogo curto quase tão mau como o meu.” E, no entanto, estou muito mais inclinado para outra hipótese: a de eu poder vender um dia por um milhão de euros a fotografia em que estamos juntos, de resto na companhia dos restantes dois elementos da nossa formação do pro-am, Orlando Macedo e Diogo Louro – e que hoje mesmo, ao arrepio de um princípio que estabeleci logo na adolescência, lhe pedirei que me autografe.

Há um velho aforismo de golfe, criado por Leon Griffiths que vale para quase tudo. “O golfe é como um caso de amor. Se não o levas a sério, não tem piada nenhuma. Se levas, parte-te o coração”, dizia Griffiths. Pois o princípio aplica-se a qualquer jogo ou competição, menos a um pro-am. Num pro-am, os amadores procuram obter tantos birdies net quanto consigam, mas sobretudo não querem ser eles a provocar o declínio da equipa. Já os profissionais tentam oferecer aos seus amadores o melhor de si, mas em nenhum caso deixar de tentar sobretudo concatenar o campo para as quatro rondas competitivas que começam no dia seguinte.

No fim, dá-se esse contra-senso: perder não nos parte o coração (o que não deixa de ter o seu constrangimento), mas em todo o caso foi um dia com piada. E jogar ao lado de Matteo Manassero tem efectivamente piada. Porque, primeiro, olhamos para ele, com a sua carinha bochechuda de bebé pontilhada por uma miríade de borbulhas de acne, e sentimo-nos na presença de um adolescente. E porque, depois, é ele quem sai das marcas de campeonato, dois quilómetros lá atrás – e somos nós, homens de barba rija, quem sai dali das amarelinhas, com o coração nas mãos, em esforço perante a necessidade de um carry de 190 metros, aflitos porque há um lago à esquerda.

A Matteo Manassero, apetece levá-lo para casa, dar-lhe livros para ler, explicar-lhe como se faz a barba, ajudá-lo com o TPC, contar-lhe o pouco que sabemos sobre as mulheres. E apetece também dar-lhe um par de palmadas quando falha um putt que até nós metíamos, quando deixa um chip-and-run comprido e num downslope – e, ainda assim, continua a sorrir, ignorante de que num putt desses estará um dia, para ele, a diferença entre o Céu e o Inferno. Não vale a pena: é deixá-lo sorrir enquanto pode. Algures, também ele aprenderá o medo – e, então, há-de haver momentos em que trocaria dez anos de vida pela oportunidade de sair das amarelas. Será essa a nossa vingança. Modesta, mesmo assim.

CRÓNICA (Especial Portugal Masters)

O Jogo, 14 de Outubro de 2010

(imagem: © www.dn.pt)

publicado por JN às 10:51

09 Outubro 2010

No momento em que vos escrevo, estou fartinho de golfe. É sábado à noite. Cheguei há instantes da SportTV, onde faço comentários sobre golfe e tive esta tarde um directo de três horas. Entretanto, já negociei o espaço para amanhã n’O Jogo, no qual, entre outras coisas, sou aquilo a que na gíria se chama um golf writer. Agora estou a escrever esta crónica (sobre golfe, por sinal), mas daqui pouco tenho uma página sobre a Ryder Cup para articular – e amanhã será parecido, incluindo mais uma página sobre a dita Ryder Cup, os últimos quatro planos do Especial que se encerra com este texto e, por volta da uma da manhã (e durante mais duas horas em directo), um comentário sobre o Viking Classic, torneio realizado no Mississippi com jogadores de terceira linha. Basicamente, já não posso ver uma bola e um buraquinho, que me apetece vomitar.

E, no entanto, é fatal: amanhã, quando às cinco da manhã estiver a revolver-me na cama depois de mais um fim-de-semana a correr como uma barata tonta, não serão carneirinhos que contarei. Nem será um livro que abrirei. Nem será uma série de televisão tonta que verei. Com a cabeça sobre a almofada, na expectativa de que enfim se me desacelere o coração, imaginar-me-ei no tee do buraco 1, batendo “um glorioso, navegante, entrelaçado drive” (para usar as palavras de John Betjeman) – e então irei por aí fora, birdie no 1, par no 2, par no 3, birdie no 4: uma sucessão de pars e de birdies (incluindo um eagle, este no 15), até que, enfim, se conclua a ronda de golfe perfeita. Ainda há dois dias, fartinho disto, cheio de shanks no jogo longo e de yips no putting, voltei a decidir parar uns meses, a ver se recupero o gosto de jogar este esquizofrénico jogo. E, todavia, sei-o bem: segunda-feira de manhã, já não desejarei outra coisa senão voltar a pisar o verde.

Louco, eu? Estou, sim. Por outro lado, não conheço uma só alma que um dia tenha empunhado um ferro 7, sentido no corpo um swing que de repente lhe pareceu um poema de harmonia e apanhado a bola pelo coração, fazendo-a pingar verdadeiramente ao lado da bandeira, a 140 metros de distância, que não tenha enlouquecido também. Porque não há outra modalidade desportiva – que digo eu: não há outro jogo, com tudo o que de mágico e abissal essa palavra comporta – assim, tão repleta de desafio e de carisma, de camaradagem e de comunhão com a natureza, de exigência técnica e de pathos psicológico. Dizem que é “um jogo de ricos, velhos e gordos”. Não lhes liguem. Para usar uma metáfora à mão, jogar 18 buracos de golfe é como fazer um desempate por penáltis na final da Liga dos Campeões, com a ressalva de que temos de marcá-los durante quatro longas horas: 72 penáltis (ou 80, ou 90, ou 100), batidos cada um deles com a adrenalina e o assombro de quem, se falhar, cairá num poço sem fundo – e, acertando-o, não conseguirá mais do que o direito a chutar o penálti seguinte.

Se hoje me perguntam o que sinto pelo golfe, não tenho dúvidas: amo-o e odeio-o em iguais proporções. Amo-o quando ele me deixa manter a cabeça à tona de água – e, naturalmente, odeio-o quando ele ma mantém lá em baixo, impotente, com o ego destruído e a vontade imensa de dedicar-me à literatura. Mas não posso nunca esquecer-me de que, no dia em que o encontrei, passava por uma fase difícil, a meio do mais intenso tropel de emoções por que tive o azar e a sorte de experimentar – e que, desde então, não tem sido outra coisa senão ele a manter este coração batendo, enquanto o excesso de trabalho e de compromissos e de expectativas e de ambições e de post’its em geral me enchem de medo de vir a ser obrigado a fazer check out a meio da esperança média de vida para um português sem ligações ao narcotráfico. Para além de tudo, o golfe é o exercício perfeito – e hoje, quando me dá para a hipocondria, já nunca é numa doença podre que penso, mas apenas numa dor nas costas que me deixe incapaz de fazer uma rotação completa, um release preciso, um finish seguro.

O meu sonho de vida, para reduzi-los a um só, é agora poder um dia dizer como disse Ted Ray, décadas depois de vencer British Open: “O golfe é um jogo fascinante. Demorei cerca de quarenta anos a perceber que não consigo jogá-lo.” Tudo o resto virá por acréscimo.

CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")

NS', 9 de Outubro de 2010

(imagem: © www.dn.pt)

publicado por JN às 23:26

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joel neto

Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974. Publicou “O Terceiro Servo” (romance, 2000), "O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002), “Al-Jazeera, Meu Amor” (crónicas, 2003) e “José Mourinho, O Vencedor” (biografia, 2004). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista, tem trabalhado... (saber mais)
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