No momento em que vos escrevo, estou fartinho de golfe. É sábado à noite. Cheguei há instantes da SportTV, onde faço comentários sobre golfe e tive esta tarde um directo de três horas. Entretanto, já negociei o espaço para amanhã n’O Jogo, no qual, entre outras coisas, sou aquilo a que na gíria se chama um golf writer. Agora estou a escrever esta crónica (sobre golfe, por sinal), mas daqui pouco tenho uma página sobre a Ryder Cup para articular – e amanhã será parecido, incluindo mais uma página sobre a dita Ryder Cup, os últimos quatro planos do Especial que se encerra com este texto e, por volta da uma da manhã (e durante mais duas horas em directo), um comentário sobre o Viking Classic, torneio realizado no Mississippi com jogadores de terceira linha. Basicamente, já não posso ver uma bola e um buraquinho, que me apetece vomitar.
E, no entanto, é fatal: amanhã, quando às cinco da manhã estiver a revolver-me na cama depois de mais um fim-de-semana a correr como uma barata tonta, não serão carneirinhos que contarei. Nem será um livro que abrirei. Nem será uma série de televisão tonta que verei. Com a cabeça sobre a almofada, na expectativa de que enfim se me desacelere o coração, imaginar-me-ei no tee do buraco 1, batendo “um glorioso, navegante, entrelaçado drive” (para usar as palavras de John Betjeman) – e então irei por aí fora, birdie no 1, par no 2, par no 3, birdie no 4: uma sucessão de pars e de birdies (incluindo um eagle, este no 15), até que, enfim, se conclua a ronda de golfe perfeita. Ainda há dois dias, fartinho disto, cheio de shanks no jogo longo e de yips no putting, voltei a decidir parar uns meses, a ver se recupero o gosto de jogar este esquizofrénico jogo. E, todavia, sei-o bem: segunda-feira de manhã, já não desejarei outra coisa senão voltar a pisar o verde.
Louco, eu? Estou, sim. Por outro lado, não conheço uma só alma que um dia tenha empunhado um ferro 7, sentido no corpo um swing que de repente lhe pareceu um poema de harmonia e apanhado a bola pelo coração, fazendo-a pingar verdadeiramente ao lado da bandeira, a 140 metros de distância, que não tenha enlouquecido também. Porque não há outra modalidade desportiva – que digo eu: não há outro jogo, com tudo o que de mágico e abissal essa palavra comporta – assim, tão repleta de desafio e de carisma, de camaradagem e de comunhão com a natureza, de exigência técnica e de pathos psicológico. Dizem que é “um jogo de ricos, velhos e gordos”. Não lhes liguem. Para usar uma metáfora à mão, jogar 18 buracos de golfe é como fazer um desempate por penáltis na final da Liga dos Campeões, com a ressalva de que temos de marcá-los durante quatro longas horas: 72 penáltis (ou 80, ou 90, ou 100), batidos cada um deles com a adrenalina e o assombro de quem, se falhar, cairá num poço sem fundo – e, acertando-o, não conseguirá mais do que o direito a chutar o penálti seguinte.
Se hoje me perguntam o que sinto pelo golfe, não tenho dúvidas: amo-o e odeio-o em iguais proporções. Amo-o quando ele me deixa manter a cabeça à tona de água – e, naturalmente, odeio-o quando ele ma mantém lá em baixo, impotente, com o ego destruído e a vontade imensa de dedicar-me à literatura. Mas não posso nunca esquecer-me de que, no dia em que o encontrei, passava por uma fase difícil, a meio do mais intenso tropel de emoções por que tive o azar e a sorte de experimentar – e que, desde então, não tem sido outra coisa senão ele a manter este coração batendo, enquanto o excesso de trabalho e de compromissos e de expectativas e de ambições e de post’its em geral me enchem de medo de vir a ser obrigado a fazer check out a meio da esperança média de vida para um português sem ligações ao narcotráfico. Para além de tudo, o golfe é o exercício perfeito – e hoje, quando me dá para a hipocondria, já nunca é numa doença podre que penso, mas apenas numa dor nas costas que me deixe incapaz de fazer uma rotação completa, um release preciso, um finish seguro.
O meu sonho de vida, para reduzi-los a um só, é agora poder um dia dizer como disse Ted Ray, décadas depois de vencer British Open: “O golfe é um jogo fascinante. Demorei cerca de quarenta anos a perceber que não consigo jogá-lo.” Tudo o resto virá por acréscimo.
CRÓNICA ("Muito Bons Somos Nós")
NS', 9 de Outubro de 2010
(imagem: © www.dn.pt)