Jogar a pares permite-nos dividir as responsabilidades, o que tem sempre a sua dose de conforto. Mas, mais do que isso, jogar a pares permite-nos partilhar o tempo. E o tempo, nesta modalidade tão bela como doentia, tão maravilhosa como esquizofrénica, é o mais importante de tudo. O que faz você com o tempo livre de que dispõe entre shots? Eis a primeira pergunta que lhe fará qualquer psicólogo de golfe que algum dia lhe ocorra consultar. Em que é que você pensa? Qual é a sua rotina mental? Como é que você desliga do shot anterior e aborda o seguinte? Pois, quando eu jogo individualmente, desligo-me da pancada anterior – e menos ainda preparo a pancada seguinte. Passo o primeiro terço do tempo a odiar-me por jogar tão pior do que aquilo que gostaria – e, quando enfim tento mudar para outros pensamentos, logo o meu cérebro parte em busca das coisas em que ainda serei ao menos razoável na vida (inclusive como cobiçador oficial de Kate Winslet, Beyoncé e Rita Pereira, queiram-no elas ou não), desconcentrando-me para o shot imediato. Já a pares não acontece nada disso. A pares, a tensão é dividida. Conversa-se mesmo – e conversa-se sobre o que é importante: o shot a seguir.
Porque, se há um abismo num jogo a pares, não é o de ter estragado já bastante o jogo: é o de estragá-lo ainda mais a partir dali. Num jogo individual, acontece-nos isso a toda a hora: fazemos um duplo bogey no 2, metemos uma bola out of bounds no 4 – e, pronto, lá se foi o handicap todo, lá se foi o jogo inteiro, lá se foi a nossa única manhã de lazer em tantos dias, lá se foi uma semana completa de vida. Resultado: arrastamo-nos penosamente pelo campo até ao fim da ronda, à espera da hora de almoço. A pares, não. A pares é uma chatice dar um mau shot, mas é verdadeiramente grave dar outro mau shot logo a seguir. É trágico para nós, mas é trágico também para outrem – e é, portanto, trágico para nós ainda mais uma vez. No fim, fomos capazes de reconcentrar-nos repetidamente. E, quando se vai a ver, pode-se bem estar lá em cima, na classificação, quando na verdade se pensava que o jogo fora mau. Bem vistas as coisas, os resultados de uma classificação de pares são sempre menos exigentes do que os resultados de uma classificação individual. E num jogo de pares joga-se apenas para a classificação, nunca para o score.
Por mim, não vejo nada melhor. Ainda prefiro jogar contra os adversários do que contra o campo. Ainda prefiro defrontar homens do que defrontar Deus. Ou o diabo.
2. Vou ouvindo cada vez mais relatos sobre a existência de aldrabice no golfe, e aqui há umas semanas tive a oportunidade de senti-la na pele. Acabei um torneio com 9 acima do par. O campo era técnico, havia bastante vento – fora uma ronda razoável, no fundo. Noutra formação, porém, um jogador fez uma ronda de 11 acima e entregou um cartão de 6 acima. Sabe-o ele, sei-o eu e sabe um dos seus companheiros de torneio a que, porém, não coube marcar-lhe o cartão. Fiquei zangado, mas isso é o menos. O pior é esta certeza absoluta de que vai acontecer outra vez: se não a mim, a outro qualquer. “Paciência, Joel. Ele só se mente a si próprio”, diz-me o António, a dita testemunha ocular. Problema: desde quando um homem capaz de roubar alguma vez se deixará constranger por mentir a si próprio?
SCORECARD. Golfe Magazine, Agosto de 2010.