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19 Abril 2009

Parece cinema – e efectivamente é. Até porque tudo começou com um filme. Ou recomeçou. Deitado numa cama de hospital, a recuperar da longa série de operações com que os médicos lhe salvaram a vida após a sua moto ter sido abalroada por um jipe, Manuel de los Santos, então com 19 anos, queria morrer. Jovem promessa do basebol da República Dominicana, tinha um contrato apalavrado com o colosso canadiano Toronto Blues e começava a sonhar  transformar-se no novo Sammy Sosa, a maior estrela do basebol da ilha caribenha. Até que sofreu o acidente, perdeu a perna esquerda – e, de repente, tudo parecia ter acabado. Valeu-lhe um filme: “A Lenda de Bagger Vance”, de Robert Redford, história de um ex-golfista, que regressa alcoólico da II Guerra Mundial, mas acaba por suplantar o problema ao reaproximar-se do golfe. Foi ao vê-lo que Manuel quis viver de novo.
Estávamos em 2003 – e assim que teve alta do médico, Manuel de los Santos dirigiu-se a um driving range, onde esteve até às dez da noite a experimentar sozinho, esquecendo-se inclusive de comer. “Fiz de tudo. Bati bola atrás de bola, e depois ainda fui fazer uns putts e uns approaches. Senti que podia jogar aquele jogo, mesmo tendo só uma perna”, conta. “Tinha chegado a França não havia mito tempo e vivia muito sozinho. Quando estava na República Dominicana, trocava correspondência com uma rapariga espanhola, Elena Salazar. Viemos a casar e a mudarmo-nos para Paris. Mas Paris é uma cidade muito difícil, a Elena trabalhava o dia inteiro – e eu precisava de fazer alguma coisa. Também por isso, o golfe foi um milagre na minha vida.”
Hoje, Manuel de los Santos, 24 anos, não é apenas um dos melhores golfistas handicapped do mundo: é um golfista ao nível dos melhores amadores, um assumido candidato à profissionalização – e uma verdadeira inspiração para todos aqueles a quem uma grave deficiência fez esfumarem-se todas as expectativas de vida. Jogado com base numa sólida posição de pernas abertas, chamada stance, o golfe depende em grande parte da capacidade de, ao longo do swing, o jogador em causa transferir o seu peso da perna direita para a perna esquerda. Até ao aparecimento de Manuel de los Santos, simplesmente ninguém acreditava que alguém pudesse sequer bater verdadeiramente bem uma bola sem uma das pernas (ainda por cima a esquerda). Agora, já ninguém duvida disso. De los Santos bate bem verdadeiramente na bola – e, aliás, bate-a longe, mais longe até do que alguns profissionais.
“É extraordinário como ele lhe bate. É incrível ver alguém com tanta energia”, comentou Sergio Garcia, número 2 do golfe mundial, depois de com ele dividir 18 buracos num pro-am disputado em Port Aventura (Espanha), no ano passado. Foi o dia em que Manuel de los Santos se fez anunciar ao mundo. Televisões de toda a Europa, revistas de golfe norte-americanas e australianas, curiosos da maioria das proveniências – ninguém sequer olhou tanto para García como para o dominicano. A própria irmã da super-estrela decidiu fazer de caddie àquele extraordinário golfista de uma só perna, empenhado inclusive em jogar sem sequer recorrer a uma prótese. E o seu treinador, o francês Jean Phillip Rochet, deu centenas de entrevistas. “O Manuel redefine todas as regras da técnica golfísticas e da biomecânica em geral. Opta por uma pancada seca, extremamente violenta, mas põe a bola igualmente no meio do fairway. E pode pô-la, aliás, mais longe do que alguns jogadores do European Tour”, disse numa delas.
Naturalizado francês, Manuel de los Santos tornou-se no primeiro deficiente a disputar o campeonato nacional de amadores de um país (o campeonato nacional de França, em 2006) e quer agora cumprir dois objectivos: chegar a handicap zero (ou scratch) em 2009 e ganhar um lugar no circuito profissional europeu em 2010. Para já, ainda só participou num torneio profissional: um torneio disputado no final do ano passado em Bórdeus, em que não conseguiu passar o ‘cut’. Entretanto, porém, já se tornou campeão da Europa de golfe para deficientes, já melhorou o handicap (tem actualmente 2.9) e já é, inclusive, convidado para os mais variados certames de exibição e beneficência. O último foi na semana passada, no Dubai, onde a sucursal da PlaNet Finance nos Emiratos Árabes Unidos o levou para novo torneio.
“O Manuel é a prova viva de que a nossa ideia está certa. A ideia de que a vontade e a fé nos podem levar até onde as probabilidades nos desaconselham”, comentou a propósito Claire Cabanel-Rey, directora executiva daquela empresa, vocacionada para o microcrédito. “No fundo, ele personifica todos os valores que nos regem. Todos os valores que definimos como essenciais ao combate à pobreza através da microfinança”, acrescentou. Para completar o conto de fadas, a equipa de Manuel de los Santos foi a vencedora final do torneio, disputado no prestigiado Majlis Course do Emirates Golf Club Dubai – e Santos foi não só o autor dos melhores resultados, como também dos melhores shots, como relata a apaixonada imprensa presente no Dubai.
Por isso, e se Rannulph Junnah (interpretado por Matt Damon), o capitão alcoólico recuperado pelo etéreo caddie Bagger Vance (Wil Smith), vem a disputar e empatar um torneio com Bobby Jones e Walter Hagen, Manuel de los Santos acredita que também pode tornar-se profissional. Entretanto, vai treinando seis horas por dia. Seis horas: exactamente o tempo que consegue ficar em pé sobre uma perna apenas, até cair vencido pelo cansaço. “Eu não quero que a minha história inspire os deficientes a continuarem a viver”, explicou Manuel de los Santos no Dubai. “Quero que a minha história inspire os deficientes a procurarem a excepção mesmo sendo deficientes. A apontarem ao topo, mesmo que pouco antes lhes tenha parecido que nem à base poderiam chegar.”

FEATURE. J, 19 de Abril de 2009

publicado por JN às 08:40
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01 Abril 2009

No outro dia, bati no fundo. Estava no buraco 16 do campo de golfe da Ilha Terceira – e estava aflito. Desafiado para um match play gross com um handicap 13 (portanto quatro pancadas mais frágil do que eu, segundo os cálculos da EGA), trazia ainda um buraco de vantagem. Mas tinha feito quatro acima nos últimos seis buracos, quase estragara de vez uma vantagem que chegara a ser confortável – e, como se isso não bastasse, na club house esperava-nos a Ana, namorada dele e colega de trabalho minha, afiando a língua para destruir a reputação do derrotado.
E, então, o diabo decidiu transformar em arte a obra que vinha operando através de mim. Como de costume, meti a bola nas árvores. Como de costume, fiquei sem backswing. Como de costume, a bola aninhara-se num lie impossível. Como de costume, não havia linha para a escapatória. E, no entanto, o shot não foi como de costume. Foi pior. Muito pior. Medroso, eu tivera o cuidado de deixar o trolley a mais de quinze metros de distância da confusão. Mesmo assim, a bola bateu na última árvore que precisava de transpor e encaminhou-se para o trolley, ameaçando penalizar-me em mais duas pancadas – e, não contente com isso, ainda entrou caprichosamente pelos estreitos orifícios através dos quais se armazenam os tacos no saco.
Nunca mais acertei uma pancada, claro. Perdi 2 down. E, naturalmente, ouvi a Ana durante uma semana.
Há uma três ou quatro meses que ando assim. Bato na direcção de uma árvore – e, de todos os sítios onde ela podia bater, escolhe exactamente aquele que a remete para o mato. Jogo para a ilharga de um bunker, julgando-me seguro – e, como se o bunker tivesse algum poder de atracção sobre ela, a bola sofre um kick na direcção dele, rola até ao lábio mais próximo, aguenta-se uma segundo, como que a despedir-se, e mergulha. Atiro sobe um lago, utilizando desde logo um ferro a mais para pôr-me a salvo de aflições, e lá se levanta uma ventania de proporções bíblicas, fazendo a bola parar a meio e, qual Coiote apanhado nas armadilhas que ele próprio armara ao Bip-Bip, olhar para trás, acenar nervosamente e despenhar-se nas águas.
Às vezes olho para cima, semicerro os olhos e pergunto, em surdina: “Eli, Eli, Lama sabachthani?” Meu Deus, Meu Deus, porque me desamparaste?  Mas é apenas impulso irreprimível – em poucos instantes volto a baixar a cabeça. Não é Deus o culpado – é o diabo, insisto. E, à cautela, sempre evito que um pássaro me defeque lá de cima no rosto. Aliás, já voltei a usar boné também.
Das primeiras vezes que dei conta desta angústia aos meus amigos, lamentando-me por cada um dos meus erros se desmultiplicar sempre em pelo menos duas pancadas de prejuízo, as respostas foram as esperadas: “Pois não batas na direcção das árvores”, “Mas, então, porque é que jogaste para a ilharga do bunker?”, “Da próxima usa dois ferros a mais…” Toda a razão. Mas o problema é que, se não entrar no bunker, a bola entra no lago. Se não entrar no lago, vai out of bounds. Se não for out of bounds, esconde-se num rough que repente parece ter crescido meio metro desde o dia anterior. E para além disso, se eu jogo sempre na direcção das árvores, não é por não querer jogar para o meio. Quem me dera jogar para o meio. Mas quem me dera também lembrar-me sequer de onde o meio fica.
“Tive um colega que também andou assim imensos meses. Acabou opor desistir”, passaram entretanto a responder-me os meus amigos. E por ali vão eles, recordando as histórias: o colega percebeu que dava uns toques, apaixonou-se pela coisa, passou a fazer do jogo a principal evasão da sua semana, melhorou drasticamente o handicap, começou a ter dificuldades em segurá-lo, não tardou a queixar-se dos bounces e dos kickes e dos azares em geral – e, a certa altura, arrumou os ferros na garagem e foi jogar poker.
Pois uma coisa quero eu deixar clara: daqui ninguém me tira. O golfe anda a testar os meus limites – e para isso, aparentemente, tanto se alcandora dos Céus como dos Infernos. Mas mais depressa se me falha o coração do que deixo isto. Demore-se o AVC que tenho prometido e hei-de morrer batendo. E, quando deixar de bater, ainda assim irei empurrando.

CRÓNICA DE GOLFE ("Tee Time"). Jornal do Golfe, Abril de 2009

publicado por JN às 09:32

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Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974. Publicou “O Terceiro Servo” (romance, 2000), "O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002), “Al-Jazeera, Meu Amor” (crónicas, 2003) e “José Mourinho, O Vencedor” (biografia, 2004). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista, tem trabalhado... (saber mais)
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